Após 20 anos do Massacre do Carandiru pouca coisa mudou no sistema penitenciário brasileiro e no tratamento de jovens negros e pobres
"Dois ladrões considerados passaram a discutir.
Mas não imaginavam o que estaria por vir.
Traficantes, homicidas, estelionatários.
Uma maioria de moleque primário.
Era a brecha que o sistema queria.
Avise o IML, chegou o grande dia."
(Racionais MC’s)
Na tarde de 2 de outubro de 1992, trezentos e vinte cinco policiais militares armados com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas – sem insígnias e crachás de identificação – invadiram o pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo. 111 detentos foram assassinados na operação.
A invasão do presídio pela polícia foi motivada por uma briga entre internos. Segundo denúncias feitas, posteriormente, ao Ministério Público, apesar do tumulto e de sinais de fogo, não havia perigo de fuga. A PM foi chamada. Com a chegada da polícia ao local, os detentos começaram a jogar estiletes e facas para fora, demonstrando que não resistiriam à entrada da força policial. Faixas nas janelas indicavam um pedido de trégua. Mesmo assim, a ordem foi: invadir. Na ação da polícia, 111 pessoas foram mortas. Nenhum policial. 103 detentos foram alvejados por armas de fogo, com tiros dados na cabeça e tórax, quando já estavam recolhidos em suas celas.
O governo, apesar de saber que o número de mortos excedia 100 pessoas, divulgou o número de mortos na chacina só após o final das eleições municipais, quando as urnas estavam fechadas, já no final da tarde de domingo, dia 2. Dez anos depois, em 2002, o responsável pela coordenação da operação, o Coronel Ubiratan Guimarães, foi eleito deputado estadual em São Paulo com o número 14.111, em clara alusão ao número de mortos no massacre.
No dia do massacre, o Carandiru abrigava 7.257 detentos, mais que o dobro da sua capacidade. Hoje, 20 anos após a chacina, o Brasil tem mais de 550 mil pessoas presas. Neste intervalo, o mote da política penitenciária brasileira tem sido a construção de mais presídios. Na mesma medida em que estes são construídos, são ocupados, lotados e superlotados. Favorecendo a expansão no número de vagas em vez de políticas desencarceradoras reais, o resultado é que, em quinze anos, entre 1995 e 2010, a taxa de detenção passou de 95 para 260. A proporção no aumento da população prisional brasileira é comparável apenas a dos Estados Unidos.
No Pavilhão 9, cenário do massacre, oitenta por cento das vítimas da chacina ainda esperavam por uma sentença definitiva da Justiça, ou seja, não tinham sido condenados: eram presos provisórios.
A questão penitenciária brasileira há anos é denunciada aos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos. O próprio caso do Massacre do Carandiru foi objeto de apreciação pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2000, quando emitiu um relatório declarando o país responsável pelas mortes dos 111 internos do Pavilhão 9.
Na época, a Comissão recomendou ao Brasil “[d]esenvolver políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção (…) prevenir surtos de violência nesses estabelecimentos.” Naquele mesmo ano, 27 pessoas privadas de liberdade foram mortas no Presídio Urso Branco, em Rondônia, no segundo maior massacre de presos do Brasil. Seis anos e sessenta outros internos mortos depois, a Comissão emitiu seu relatório de admissibilidade do Caso Urso Branco, admitindo sua competência para analisar o caso, porém ainda tramita no Sistema Interamericano.
de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos,
mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos
quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
e todos sabem como se tratam os pretos”
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
É fácil identificar no massacre do Carandiru indícios da política de extermínio da juventude negra e pobre que ainda opera a lógica do sistema penal brasileiro. Dos 111 detentos assassinados, 86 tinham idade entre 18 e 30 anos. No sistema penitenciário, hoje, aproximadamente, metade dos internos possui entre 18 e 29 anos e majoritariamente são pretos e pardos. A tortura e o tratamento cruel e degradante ainda é uma prática sistemática utilizada contra as pessoas privadas de liberdade do Brasil. O país ainda não possui uma legislação adequada para enfrentar esse problema, como criando o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, nos moldes em que recomenda o Protocolo Facultativo das Nações Unidas Contra a Tortura.
A juventude negra é o alvo preferencial da violência institucional, seja através do seu encarceramento, seja através da sua execução extrajudicial. Dados do SUS apontam que o número de negros assassinados no Brasil é duas vezes maior do que o de brancos. 53% dos homicídios registrados no Brasil atingem os jovens, desse total, mais de 75% são negros, na maioria do sexo masculino e de baixa escolaridade.
Em 1992, o Massacre do Carandiru chocou o país e no ano seguinte a Chacina da Candelária também provocou o mesmo efeito. O extermínio (nem tão) silencioso da população pobre, especialmente negra, agora parece passar despercebido. Morte, tortura, remoções forçadas, incêndios suspeitos em comunidades e preconceito ainda são o cotidiano de milhares de brasileiros e brasileiras em razão da sua cor de pele, classe social e/ou lugar de moradia.
Há muitas lições que podemos tirar olhando de volta para o que se deu vinte anos atrás e à luz dos massacres cotidianos que acontecem nas periferias do Brasil: uma das principais é importância de nos organizarmos contra a violência estatal, que sofre uma grande parcela da nossa população – que não deixemos de denunciar e lutar contra a violência estrutural e estruturante do Estado brasileiro.
Justiça Global
Nenhum comentário:
Postar um comentário