Jornalista Breno Altman disseca livro de repórter da revista Veja; aponta erros factuais, contradições e pressa; falta de checagem entre afirmações e fontes leva texto a envolver ex-ministro José Dirceu em situações das quais não há registro nenhum de sua participação; presença de Thaís Oyama, chefe do autor Otavio Cabral na revista, tanto na copidescagem do livro como no texto da capa de Veja que o anuncia mostra que “promiscuidade é irrelevante” para os padrões éticos da publicação semanal; “É um desrespeito ao leitor e ao código de defesa do consumidor”, diz resenhador; artigo exclusivo:
Livro não passa de uma fraude, da primeira à última linha.por Breno Altman*
O título é um petardo que coraria escritores mais tarimbados e talentosos. O jornalista Otávio Cabral, da equipe de “Veja”, não deixou por menos: “Dirceu, a biografia”. Um recorde incrível foi batido pelo autor, que deixaria humilhados biógrafos de maior fama: levou apenas seis meses para pesquisar e escrever “a” obra definitiva sobre personagem crucial da história política brasileira, cuja vida pública percorre quase cinquenta anos.
Patrocinado pela revista que paga seu salário, publicação notória pela isenção quando o assunto é José Dirceu, Cabral mereceu capa em edição desta semana, na lambuja de artigo assinado por Thaís Oyama, sua chefe imediata. A empreitada foi carimbada como “completa e surpreendente”.
A resenhadora, aliás, recebe derretidos agradecimentos, no próprio livro, por ter ajudado a “melhorar o texto” e tirar o escriba de “algumas enrascadas”. Mas essa aparente promiscuidade é um detalhe irrelevante para os elevados padrões éticos que vicejam na editora situada às margens do rio Pinheiros.
Tampouco tem importância a opinião do pretenso biógrafo, ainda que o grau de intoxicação vá bem além do admissível. Fernando Morais, renomado escritor de esquerda, fez da vida de Assis Chateaubriand, homem de direita, obra prima da biografia. Otávio Cabral, repórter a serviço da mídia fascistóide, porém, não escreveu sobre seu personagem, mas contra ele. Isso era de se esperar. A marca registrada dos jornalistas de “Veja”, afinal, com raríssimas exceções, é ostentar os mais aclamados prêmios no vale-tudo que tantaliza boa parte da imprensa tradicional.
Fundamental mesmo é que o livro não passa de uma fraude, da primeira à última linha. Uma enganação. Um desrespeito ao leitor e ao código de defesa do consumidor. O que a revista anuncia e o escritor promete não passam de propaganda enganosa e abusiva. Ambos sonegam informações relevantes, conduzem ao erro e prejudicam o conhecimento da verdade.
Para começo de conversa, Cabral simplesmente omite a lista dos entrevistados para a biografia. Ninguém sabe quem testemunhou ou declarou a maior parte dos fatos. O autor fala em 63 pessoas com quem teria encontrado na fase de pesquisas. Pouquíssimas são citadas nas notas de rodapé. Qualquer biografia que se preza registra as fontes de investigação.
A jornalista Mônica Bergamo, em post no Facebook, já desmentiu relato no qual se viu citada. Certamente não será a única. Fernando Morais, que não foi ouvido pelo autor, também repele como falsos os momentos nos quais é referido. Eu mesmo fui tratado, em determinada passagem, como “porta-voz de Dirceu para momentos delicados, como o sequestro de Abílio Diniz”. Não apenas é uma deslavada mentira, como Cabral, por quem aceitei ser entrevistado, jamais me perguntou a esse respeito.
A maior parte das passagens é mera republicação, às vezes literal, de reportagens da própria “Veja” ou de outros veículos, difundidas nas últimas décadas. O autor não se dá ao trabalho de cotejar informações e testemunhos, verificar fatos, refazer caminhos. Seu desempenho não vai além de um colegial que pesquisa algum tema no Google e copia acriticamente o que vê pela frente. Se o livro fosse um TCC – o Trabalho de Conclusão de Curso que as faculdades de jornalismo exigem de seus alunos, Cabral teria levado bomba.
Não vacila em agir com este despudor sequer ao recorrer a arquivos da ditadura militar. Documento assinado pelo delegado Alcides Cintra Bueno Filho, torturador de carteira registrada no DOPS paulista, relata que Dirceu teria sequestrado, em 1968, estudantes ligados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC). No texto sofrível de Cabral, é o que basta para ser apresentado como fato líquido e certo. E esse é apenas um exemplo.
Outro mais? Lá pelas tantas, o autor conta que Dirceu teria participado de uma ação, em 1972, que resultaria no assassinato de um sargento da Polícia Militar. A fonte? Relatórios do II Exército, que se referem a uma testemunha identificando o líder petista em um cartaz de procurados. A ditadura não abriu inquérito, a partir de prova tão frágil, mesmo José Dirceu sendo um homem marcado para morrer, mas o escrevinhador mandou bala. Não foi capaz, ao menos, de entrevistar um suposto sobrevivente daquela operação, José Carlos Giannini, apesar de citá-lo.
Um biógrafo de verdade, como Mário Magalhães, ao escrever sobre Carlos Marighella, comparou três fontes sobre cada episódio, no mínimo, antes de cravá-lo como verdadeiro. Não é à toa que levou dez anos para concluir sua obra sobre o comandante guerrilheiro. Esse método definitivamente não é o do jornalista de “Veja”. Além do recorta-e-cola de matérias antigas e textos policiais, apostou muitas de suas fichas em boatos sem origem indicada e em depoimentos de conhecidos desafetos do biografado. A ideia do contraditório e da acareação lhe é totalmente estranha.
Inúmeras das notas que chancelam determinadas informações apontam para “um assessor”, “um jornalista” ou “uma testemunha”. Sem nome ou sobrenome. Seria trágico se não fosse cômico. Um dos depoentes que dá a cara é o ex-petista Paulo de Tarso Venceslau. Amigo de Dirceu no movimento estudantil, depois dos anos 90 virou inimigo figadal. Mas seus relatos são tratados pelo autor como verdades cristalinas, sem qualquer contraponto. O resultado seria o mesmo se uma biografia de Fidel Castro fosse escrita principalmente a partir de entrevistas com cubanos da Florida ou se a história de Trotsky fosse contada pela direção soviética dos anos 30 e 40.
O pastiche se supera quando especula que havia suspeita sobre Dirceu ter sido o delator que teria levado às quedas e ao extermínio do Molipo, organização armada à qual pertencia. O próprio Cabral, no entanto, cita que os contemporâneos do biografado, alguns também sobreviventes do massacre, negam essa versão e prestam-lhe seguidas homenagens e manifestações de solidariedade. O autor se baseia em depoimento de um ex-coronel das Forças Armadas, envolvido em atividades repressivas, que não é corroborado por mais ninguém ou por qualquer documento. Pura patifaria.
Não consegue, a propósito, sequer dar ares de seriedade a suas invencionices. Profundamente ignorante sobre a história do país e da esquerda, confunde incontáveis dados, datas e personagens, além de se atrapalhar e cair em seguidas contradições. Paulo Vanucchi, citemos um caso, é apresentado como militante da ALN em um canto e do MEP n’outro, algo estapafúrdio, misturando organizações sem qualquer identidade entre si.
Identifica o Departamento América, organismo do Partido Comunista Cubano, como parte do serviço secreto. Destaca que Dirceu teria ficado na Casa do Protocolo, supostamente localizada em área periférica de Havana, quando há inúmeras casas de protocolo, como os cubanos chamam as residências para convidados estrangeiros, todas com endereço em um dos bairros mais nobres da cidade. E por aí vai. Cabral, diga-se, conseguiu escrever páginas e páginas sobre a estadia de seu personagem em Cuba sem ter pisado na ilha para ouvir testemunhas e pesquisar fontes primárias. Um assombro de arrivismo.
Para apimentar o enredo, deu espaço a todo tipo de fofoca sobre a vida pessoal do ex-ministro. Fez uma lambança sem tamanho, atribuindo situações e sentimentos, ainda que jamais tenha ouvido qualquer de suas ex-companheiras. Erra até datas de casamento e cria relações como um romancista de folhetim barato. No bom estilo inventa-e-foge, planta maliciosamente que o mulherengo infernal teria algum vínculo homossexual com o intelectual cubano Alfredo Guevara, para logo dizer que não era bem assim.
Sobre o chamado “mensalão”, então, Cabral faz um prato caprichado. Uma colada básica no relatório de Joaquim Barbosa, e está liquidada a fatura. Nem mesmo aproveita a loquacidade do advogado José Luiz de Oliveira e Lima, costumeiramente disponível a contar sobre bastidores de seu cliente, para investigar contraprovas da defesa ou analisar mais a fundo tanto os acontecimentos entre 2003-2005 quanto o julgamento de 2012. Preguiçosa e interesseiramente, adota sem pestanejar o ponto de vista de quem lhe assina o cheque de cada mês.
Os únicos leitores com os quais Cabral parece ter compromisso, a bem da verdade, são seus chefes na Veja. A estes entregou a mercadoria prometida: mais um libelo contra José Dirceu. Feito nas coxas, seguindo o manual para linchamento de reputações que faz sucesso entre seus pares, mandando às favas qualquer critério jornalístico ou rigor de pesquisa. Coisa de charlatão.
Ao distinto público, no entanto, está sendo oferecido gato por lebre. O livrinho é um estelionato editorial que lança mais luz sobre o autor e seus patrocinadores que sobre o biografado. Um bom caso para o Procon.
*Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel
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