25/10/2012 - no Carta Maior
Há alguma coisa de profundamente errado com a liberdade de expressão num país quando, a cada escrutínio eleitoral, a maior preocupação de uma parte da opinião pública e dos partidos, nos estertores de uma campanha como agora, não se concentra propriamente no embate final de idéias, mas em prevenir-se contra a 'emboscada da véspera''.
Não se argui se ela virá; apenas como e quando a maior emissora de televisão agirá na tentativa de raptar o discernimento soberano da população, sobrepondo-lhe seus critérios, preferências e interditos.
Tornou-se uma aflita tradição nacional acompanhar a contagem regressiva dessa fatalidade.
A colisão entre a festa democrática e a usurpação da vontade das urnas por um interdito que se pronuncia de véspera, desgraçadamente instalou-se no calendário eleitoral. E o corrói por dentro, como uma doença maligna que pode invalidar a democracia e desfibrar a sociedade.
A evidencia mais grave dessa anomalia infecciosa é que todos sabem de que país se fala; qual o nome do poder midiádico retratado e que interesses ele dissemina.
Nem é preciso nominá-los. E isso é pouco menos que a tragédia na vida de uma Nação.
De novo, a maleita de pontualidade afiada rodeia o ambiente eleitoral no estreito espaço que nos separa das urnas deste 28 de outubro.
Em qualquer sociedade democrática uma vantagem de 15 pontos como a de Haddad seria suficiente para configurar um pleito sereno e definido.
Mas não quando uma única empresa possui 26 canais de televisão, dezenas de rádios, jornal impresso, editora, produção de cinema, vídeo, internet e distribuição de sinal e dados.
Tudo isso regado por uma hegemônica participação no mercado publicitário, inclusive de verbas públicas: a TV Globo, sozinha, receberá este ano mais de 50% da verba publicitária de televisão do governo Dilma.
Essa concentração anômala de munição midiática desenha um cerco de incerteza e apreensão em torno da democracia brasileira. Distorce a vida política; influencia o Judiciário; corrompe a vaidade de seus membros; adestra-os, como agora, com a cenoura dos holofotes a se oferecerem vulgarmente, como calouros de programas de auditório, ao desfrute de causas e interesses que tem um lado na história. E não é o do aperfeiçoamento das instituições nem da Democracia.
O conjunto explica porque, a três dias das eleições municipais de 2012, pairam dúvidas sobre o que ainda pode acontecer em São Paulo, capaz de fraudar a eletrizante vitória petista contra o adversário que tem a preferência do conservadorismo, a cumplicidade dos colunistas 'isentos',a 'independência' do Judiciário e a torcida, em espécie, da plutocracia.
Não há nessa apreensão qualquer traço de fobia persecutória.
Há antecedentes. São abundantes a ponto de justificar o temor que se repitam.
Multiplas referenciais históricas estão documentadas. Há recorrência na intervenção indevida que mancha, enfraquece e humilha a democracia,como um torniquete que comprime a liberdade das urnas.
Mencione-se apenas a título ilustrativo três exemplos de assalto ao território que deveria ser inviolável, pelo menos muitos lutaram para que fosse assim; e não poucos morreram por isso.
Em 1982, a Rede Globo e o jornal O Globo arquitetaram um sistema paralelo de apuração de votos nas eleições estaduais do Rio de Janeiro.
Leonel Brizola era favorito, mas o candidato das Organizações Globo, Moreira Franco, recebera privilégios de cobertura e genuflexão conhecidos. Os sinais antecipavam o estupro em marcha das urnas.
Ele veio na forma de um contagem paralela - contratada pela Globo - que privilegiaria colégios do interior onde seu candidato liderava, a ponto de se criar um 'consenso' de vitória em torno do seu nome.
O assédio só não se consumou porque Brizola recusou o papel de hímen complancente à fraude.
O gaúcho recém chegado do exílio saiu a campo, convocou a imprensa internacional, denunciou o golpe em marcha e brigou pelo seu mandato. Em entrevista histórica --ao vivo, por sua arguta exigencia, Brizola denunciou a manobra da Globo falando à população através das câmeras da própria emissora.
Venceu por uma margem de 4 pontos. Não fosse a resistência desassombrada, a margem pequena seria dissolvida no contubérnio entre apurações oficiais e paralelas.
Em 1983 os comícios contra a ditadura e por eleições diretas arrastavam multidões às ruas e grandes praças do país.
A Rede Globo boicotou as manifestações enquanto pode, mantendo esférico silêncio sobre o assunto. O Brasil retratado em seu noticioso era um lago suíço de resignação.
No dia 25 de janeiro de 1984, aniversário da cidade, São Paulo assistiu a um comício monstro na praça da Sé. Mais de 300 mil vozes exigiam democracia, pediam igualdade, cobravam eleições.
O lago tornara-se um maremoto incontrolável. A direção editorial do grupo que hoje é um dos mais aguerridos vigilantes contra a 'censura' na Argentina, Venezuela e outros pagos populistas, abriu espaço então no JN para uma reportagem sobre a manifestação. Destinou-lhe dois minutos e 17 segundos.
Compare-se: na cobertura do julgamento em curso da Ação penal 470, no STF, o mesmo telejornal dispensou mais de 18 minutos nesta terça-feira a despejar ataques e exibicionismos togados contra o PT, suas lideranças e o governo Lula.
Naquele 25 de janeiro estava em causa, de um lado, a democracia; de outro, a continuidade da ditadura.
Esse confronto mereceu menos de 1/6 do tempo dedicado agora ao julgamento em curso no STF. Com um agravante fraudulento: na escalada do JN, a multidão na praça da Sé foi associada, "por engano", explicou depois a emissora, 'a um show em comemoração aos 430 anos da cidade'. Passemos...
Em 1989, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello realizariam o debate final de uma disputa acirrada e histórica: era o primeiro pleito presidencial a consoliar o fim da ditadura militar.
No confronto do dia 14 de dezembro Collor teve desempenho pouco superior ao de Lula. Mas não a ponto de reverter uma tendência de crescimento do ex-líder metalúrgico; tampouco suficiente para collorir os indecisivos ainda em número significativo.
A Globo editou o debate duas vezes. Até deixá-lo 'ao dente', para ser exibido no Jornal Nacional.
Collor teve um minuto e oito segundos a mais que Lula; as falas do petista foram escolhidas entre as suas intervenções mais fracas; as do oponente, entre as suas melhores.
Antes do debate a diferença de votos entre os dois era da ordem de 1%, a favor de Collor; mas Lula crescia. Depois do cinzel da Globo, Collor ampliou essa margem para 4 pontos e venceu com quase 50% dos votos;Lula teve 44%. As consequências históricas dessa maquinação são sabidas.
São amplamente conhecidas também as reiterações desse tipo de interferência nos passos posteriores que marcaram a trajetória da democracia brasileira.
Ela se fez presente como obstaculo à vitória de Lula em 2002; catalisou a crise de seu governo em 2005 --quando se ensaiou um movimento de impeachment generosamente ecoado e co-liderado pelo dispositivo midiático conservador; atuou no levante contra a reeleição de Lula em 2006 e agiu na campanha ostensiva contra Dilma, em 2010.
A indevida interferência avulta mais ainda agora. Há sofreguidão de revide e um clima de 'agora ou nunca' no quase linchamento midiático promovido contra o PT, em sintonia com o calendário e o enrêdo desfrutáveis, protagonizados por togas engajadas no julgamento em curso do chamado mensalão'.
Pouca dúvida pode haver quanto aos objetivos e a determinação férrea que vertem desse repertório de maquinações, sabotagens e calúnias disseminadas.
Sua ação corrosiva arremete contra tudo e todos cuja agenda e biografia se associem à defesa do interesse público, do bem comum e da democracia social.Ou, dito de outro modo, visa enfraquecer o Estado soberano, desqualificar valores e princípios solidários que sustentam a convivência compartilhada.
Os governantes e as forças progressistas brasileiras não tem mais o direito --depois de 11 anos no comando do Estado- de ignorar esse cerco que mantem a democracia refém de um poder que só a respeita enquanto servir como lacre de chumbo de seus interesses e privilégios.
Os requintes de linchamento que arrematam o espetáculo eleitoral em que se transformou a ação Penal 470, ademais da apreensão com a 'bala de prata midiática' que possa abalar a vitória progressista em SP, não são fenômenos da exclusiva cepa conservadora.
A conivência federal com o obsoleto aparato regulador do sistema de comunicações explica um pedaço desse enredo. Ele esgotou a cota de tolerância das forças que elegeram Lula e sustentam Dilma no poder.
O país não avançará nas trasformações econômicas e sociais requeridas pela desordem neoliberal se não capacitar o discernimento político de mais de 40 milhões de homens e mulheres que sairam da pobreza, ascenderam na pirâmidade de renda e agora aspiram à plena cidadania.
A histórica obra de emancipação social iniciada por Lula não se completará com a preservação do atual poder de veto que o dispositivo midiático conservador detém no Brasil.
Persistir na chave da cumplicidade, acomodação e medo diante desse aparato tangencia a irresponsabilidade política.
Mais que isso: é uma assinatura de contrato com a regressão histórica que o governo Dilma e as forças que o sustentam não tem o direito de empenhar em nome do povo brasileiro.
Que a votação deste domingo seja a última tendo as urnas como refém da rede Globo, dos seus anexos, ventrílocos e assemelhados. Diretas, já! Esse é um desejo histórico da luta democrática brasileira. Carta Maior tem a certeza de compartilhá-lo com seus leitores e com a imensa maioria dos homens e mulheres que caminharão para a urna neste domigo dispostos a impulsionar com o seu voto esse novo e inadiável divisor da nossa história.
Bom voto.
Postado por Saul Leblon às 07:31
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